Nos bastidores dos massacres das escolas de Realengo, em 2011, e Suzano, na última quarta-feira, está um brasiliense de 33 anos. Ele criou e abasteceu com informações criminosas um site destinado a extremistas, que estimulou e ajudou os autores em ambos os ataques. E, antes deles, levou terror à Universidade de Brasília (UnB), onde estudou e ameaçou uma chacina. A Polícia Federal o prendeu pouco antes do prometido ato terrorista.
Marcello Valle Silveira Mello nasceu em 1985, em uma família de classe média alta brasiliense. Filho único de um pai que morreu jovem, quando Marcello ainda era um bebê. A mãe, servidora pública, trabalhou no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), tendo sido lotada no gabinete da Presidência da República. Afastada do emprego por problemas psiquiátricos, deixou a criação do filho para a avó materna dele.
Em 25 anos na capital, Marcello morou em alguns dos melhores endereços da cidade, como a Asa Sul. Introvertido, nunca foi de fazer amigos. Em depoimentos à polícia, alegou ter sofrido bullying na escola e, desde cedo, odiar mulheres. Detestava ser derrotado em qualquer brincadeira para uma oponente do gênero feminino. De pele branca, também nunca gostou de negros, LGBTs, nordestinos e políticos e militantes de esquerda.
Cracker
Marcello extravasou seu ódio na UnB e na internet. Quando redes sociais como Facebook e Instagram inexistiam, criou comunidades no Orkut e fez amizades e contatos com homens misóginos e racistas de extrema-direita. Logo se tornou uma liderança entre os grupos. Não costumava usar codinomes, não se escondia. Tampouco poupava seus desafetos. Tornou-se o primeiro condenado no Brasil por racismo no universo digital, em 2009.
À época, ele cursava letras, com ênfase em japonês, na UnB. Fazia campanha contra as cotas raciais. Publicava todo tipo de conteúdo racista na internet, num período em que a maioria dos internautas havia deixado o Orkut e migrado para sites e blogs.
O estudante de letras também atacava as mulheres da UnB, em especial, as negras e as lésbicas. Denunciado por colegas e docentes, deixou a instituição para cursar computação em uma faculdade particular, mas não largou o crime, mesmo condenado a um ano e dois meses de prisão. Continuou em liberdade graças a recursos dos seus advogados, que alegavam insanidade do cliente.
Pedofilia e estupro
Como um cracker — o hacker do mal — respeitado no submundo da internet, em 2011, Marcello se mudou para Curitiba, onde passou a cursar direito em uma universidade privada. Em um dos sites dele, o Silvio Koerich (um pseudônimo do criador), internautas comemoraram a ação de Wellington Menezes na escola estadual onde havia estudado, em Realengo.
Em 7 de abril de 2011, o jovem matou 10 meninas e dois meninos. Depois, se matou. Testemunhas contaram — e perícias constataram — que o assassino atirava nas meninas para matar e nos meninos, para ferir. A preferência pelos alvos femininos foi exaltada na página de Marcello, onde Wellington era tratado como herói. Mas, quando a Polícia Civil começou a fazer buscas e apreensões para investigar o atentado, o Silvio Koerich saiu do ar.
O site voltou em agosto de 2011, pregando a legalização do estupro e da pedofilia e o “estupro corretivo” para lésbicas. Exibia publicações com títulos como “Seja homem: mate uma mulher hoje”. Oferecia recompensa a quem matasse o então deputadoJean Wyllys (PSol-RJ), homossexual declarado, e Lola Aronovich, autora de blog feminista e professora na Universidade Federal do Ceará. Anunciava um atentado no prédio de ciências sociais da UnB, para “matar vadias e esquerdistas”.
Reincidência
Policiais federais prenderam Marcello em março de 2012, na Operação Intolerância. Durante buscas em Brasília e em Curitiba, os agentes encontraram um mapa apontando uma casa de festas frequentada por alunos da UnB, no Lago Sul. Local onde, segundo a PF, poderia ocorrer a matança anunciada. Na conta bancária dele, havia R$ 440 mil, depositados pela mãe, segundo o acusado. Investigadores confirmaram a procedência do dinheiro. Ele, que nunca trabalhou, sempre teve as contas pagas pela mãe.
A Justiça Federal condenou Marcello a seis anos e sete meses de prisão em regime semiaberto, pelos crimes de indução à discriminação ou preconceito de raça; incitação à prática de crime; e publicação de vídeos e fotografias de crianças e adolescentes em cenas de sexo. Ele integrava uma comunidade de pedófilos. Após um ano e seis meses detido no Paraná, ganhou o direito de cumprir pena em liberdade.
Marcello voltou a criar páginas criminosas na internet. Entre elas, a Dogolachan, onde se escondia por meio dos apelidos Psy e Batoré. A Dogolachan só é acessível na dark net, um espaço para debate sobre prática de crimes, violação de direitos humanos, propagação de racismo, homofobia e misoginia. Mas, no Twitter, Marcello mantinha um perfil com seu nome e foto, escrevendo ameaças.
Nova pena
O Dogolachan era comandado por Marcello até maio de 2018, quando policiais federais o prenderam na Operação Bravata. Desde então, um certo DPR se tornou o administrador. Marcelo recebeu pena de 41 anos, seis meses e 20 dias de prisão por racismo, coação, associação criminosa, incitação ao cometimento de crimes, divulgação de imagens de pedofilia e terrorismo cometidos na internet.
A decisão do juiz federal Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, também o condena a pagar R$ 1 milhão como reparação de danos. O magistrado considera “inequívoca” a periculosidade de Marcello. “Solto, ele pode ser uma verdadeira ameaça à ordem social. Não só na condição de autor de delitos como na divulgação de imagens de pedofilia e racismo, mas também como grande incentivador de cometimento de crimes ainda mais graves por parte de terceiros, como homicídios, feminicídios e terrorismo.
Agora, policiais civis de São Paulo investigam o Dogolachan por causa do massacre em Suzano. Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25, atiradores que mataram nove pessoas e depois se suicidaram na Escola Raul Brasil, usaram o Dogolachan, maior fórum de propagação de ódio, para juntar dicas para o ataque. Pouco depois do atentado, integrantes do fórum celebraram os assassinatos (leia Para saber mais).
Ameaçada milhares de vezes e com 11 queixas registradas contra Marcello, Lola Aronovich descreve o extremista como irrecuperável. “Ele é do tipo que guarda mágoa, rancor e ódio para sempre, do tipo que se lembra da menininha que o esnobou na primeira série e tenta se vingar dela um quarto de século depois. Espero que Marcello fique muitos anos preso, mas tenho certeza de que, assim que ele sair da cadeia, voltará a fazer o mesmo que fazia antes.”
Colaborou Mariana Machado
» Para saber mais
Orientações e ajuda com armas
Uma semana antes do massacre da escola de Suzano, um dos atiradores publicou um agradecimento ao administrador do site Dogolachan, conhecido como DPR. “Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR. Esperamos do fundo dos nossos corações não cometer esse ato em vão. (...) Nascemos falhos, mas partiremos como heróis. (...) Ficamos espantados com a qualidade, digna de filmes de Hollywood”, diz a mensagem.
O administrador deu detalhes de como ajudou os dois atiradores a conseguirem armas, além de descrever Guilherme como ‘um bom garoto que acabou descobrindo da pior forma possível que brincadeiras podem se tornar pesadelos reais”. Mais tarde, DPR, o administrador, descreveu trocas de e-mails com Luiz, que teria interesse em comprar uma arma com facilidade, e que também foi apresentado a Guilherme por Luiz.
Fonte: Correio Braziliense
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