ITAPISSUMA (PE) — Rosa Ângela levou dois dias para aceitar a filha que tinha acabado de nascer.
— Ela foi pro berçário, fiquei num quarto. Perguntaram depois se eu queria que ela subissepro quarto. Passou dois dias até subir, porque eu não queria. Ficar ali com ela, sabe? Nãotava preparada. Chorei, a psicóloga veio, conversou. Até eu ficar, assim, mais conformada.
Aparelho nos dentes, a menina de 17 anos viu o rosto da microcefalia na sua primeira filha. Lara Safira nasceu há três meses com crânio de 28 cm e pegou a família de surpresa: a doença não tinha sido diagnosticada até então, apesar de a mãe ter feito pré-natal e três ultrassonografias durante a gravidez. Rosa Ângela mora com o marido e a filha do casal em Itapissuma, município da Região Metropolitana de Recife, a cerca de 45 quilômetros da capital do estado que mais tem registrado casos de microcefalia no Brasil.
Reabilitação precisa de mais locais
O quadro de tragédia na Saúde que se formou com a revelação de que grávidas que contraíram o vírus zika tiveram, por causa do vírus, bebês com microcefalia — vista desde o fim de 2015 em centenas de bebês no país — é uma soma de tragédias familiares. Agravada por uma demora no diagnóstico da criança. O atraso na confirmação de suspeita de microcefalia acaba adiando o início do tratamento do bebê. O atendimento de reabilitação também precisa ser ampliado para dar conta do aumento de casos da doença: em Pernambuco, o epicentro brasileiro dos casos, só três locais estão registrados até agora na Secretaria estadual de Saúde para oferecer reabilitação a crianças com microcefalia; e uma unidade municipal de Saúde começou a estruturar este mês esse serviço. Caracterizada por fazer com que o bebê tenha crânio menor que o normal, e retardo no desenvolvimento neurológico e motor, a microcefalia e sua relação com o vírus zika — transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo da dengue e da chicungunha — fizeram a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitir na última semana alerta mundial sobre a zika.
Lara começou a fazer fisioterapia quando tinha 2 meses. A mãe se trata com psicóloga até hoje.
— Ela faz fisioterapia uma vez por semana. Mas a própria médica lá já falou que é pouco, que ela precisa fazer quase todo dia. Só que lá só atendem esses casos uma vez na semana. Fica cheio — conta Rosa Ângela, atualmente no 3º ano do ensino médio; o marido de Rosa e pai de Lara, Ítalo Cassiano, tem 20 anos e faz bicos como ajudante de pedreiro.
O lugar onde a menina se trata é a Fundação Altino Ventura, entidade privada que realiza assistência gratuita de saúde no Recife, e um dos três locais habilitados na Secretaria estadual de Saúde; os outros dois são a Associação de Assistência à Criança Deficiente, também na capital, e a Mens Sana Corpore Sano, na cidade de Arcoverde, no sertão. A presidente da Altino, a médica Liana Ventura, diz tentar desde dezembro se reunir com a Secretaria estadual de Saúde para obter recursos. Segundo ela, só assim vai conseguir contratar mais funcionários para ampliar os dias de reabilitação, pois já está atendendo até 400% acima da sua capacidade.
— A prefeitura também começou a oferecer reabilitação para microcefalia ali na Policlínica Lessa de Andrade. Há ONG que reabilita crianças com síndrome de Down, por exemplo, mas não especificamente microcefalia — diz Liana.
Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
A Lessa de Andrade começou a oferecer reabilitação para microcefalia dia 4 de janeiro. Segundo funcionários, recebeu 26 casos até a última quarta. Mas, afirmaram, como a equipe ainda está sendo estruturada, os atendimentos estão só pela manhã.
A Secretaria estadual de Saúde informou que vai ampliar o número de locais com reabilitação para microcefalia, além de ampliar o número de dias de atendimento da Altino, mas disse que ainda não tem previsão de quando isso ocorrerá.
A reabilitação na microcefalia inclui estimulação dos movimentos, da visão e da audição do bebê.
— Para o bebê com microcefalia, o 1º mês de vida é o mais importante para reabilitação: é nessa fase que ele começa a desenvolver movimentos, cognição. Com a microcefalia, a informação que chega ao cérebro precisa ser corrigida. E, quanto mais cedo a informação correta chegar ao cérebro, mais chances a criança tem de se desenvolver — diz Priscila Vieira, fisioterapeuta da Fundação Altino.
Muitas vezes, porém, o bebê não inicia a reabilitação já no 1º mês porque o caso ainda é uma suspeita. Para se ter a confirmação, aqueles que, 48 horas depois do parto, tiverem o crânio considerado microcéfalo — com 32 cm ou menos — precisam passar por ecografia e tomografia.
— O tempo entre a suspeita e a confirmação ou não depende muitas vezes do local onde a criança nasce — disse ao GLOBO o secretário de Atenção à Saúde do ministério, Alberto Beltrame. — Se nasce numa capital, tem acesso mais rápido a ecografia e tomografia, às vezes a maternidade já faz. Se nasce no interior, e a família precisa agendar exames em outra cidade, isso pode levar, por exemplo, 30 dias.
No entanto, o secretário ressalta que a orientação que o ministério dá às unidades é que elas realizem “atendimento de estimulação precoce nos bebês mesmo quando os casos ainda são de suspeita”.
Ninguém avisou isso a Renata Nobre ainda. Também moradora de Itapissuma, a mãe de Rodrigo, de 4 meses, tenta há dois meses saber se a suspeita de microcefalia do filho se confirma ou não. Nesse tempo, diz, o menino tem feito consultas e exames, mas não está recebendo nenhum tipo de estimulação motora ou visual. Renata teve zika na gravidez.
— E essa suspeita só descobriram quando ele ficou doentinho e levei no pediatra. Ele tinha 2 meses — conta Renata, de 27 anos, que marcou ecografia e tomografia no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, uma das unidades de referência para diagnóstico da microcefalia no estado.
Alberto Beltrame destaca que o Ministério da Saúde criou um protocolo de atendimento para mulheres em idade reprodutiva e gestantes:
— Cerca de 50% das grávidas começam o pré-natal por volta dos 3 meses. Estamos fazendo uma campanha nas unidades para que elas comecem antes. E vamos lançar esta segunda-feira um 0800 para profissionais de Saúde tirarem dúvidas sobre como diagnosticar a zika em gestantes. Os primeiros casos de zika no Brasil apareceram em abril, maio de 2015. Ou seja, estamos enfrentando o primeiro verão inteiro com a zika. É um aprendizado.
Doença provoca irritação e choro constante
Renata Nobre, de 27 anos, mãe de Rodrigo, de 4 meses, com suspeita de microcefalia - Domingos Peixoto / Agência O Globo
Renata deu sorte, que Rodrigo quase não chora. No caso de Lara, ela só não chora quando alguém lhe balança ou dá leve sacudida — recomendação médica que a família diz ter recebido para acalmá-la. A mãe, o pai e os familiares de Lara se revezam na paciência com o choro contínuo.
— Os bebês com microcefalia choram muito. A gente não sabe se é alguma dor na cabeça. É uma irritação — sublinha a médica Liana Ventura.
Ações para combate a focos do Aedes aegypti, Renata e outros moradores do Centro do município dizem que neste verão, até agora, não viram nenhuma, apesar de a área ter lixo acumulado em terrenos e de moradores já terem tido zika e dengue. A Secretaria estadual de Saúde diz que quem realiza essas ações são os municípios, que o estado só apoia quando solicitado pelas prefeituras, e que, até a última sexta, a prefeitura de Itapissuma ainda não tinha feito essa solicitação. O GLOBO não conseguiu contato com a prefeitura da cidade até o fechamento desta edição.
— Ela (Lara) tem umas 15 consultas por mês — conta Rosa, que teve febre de 3 dias na gravidez. — Numa das últimas (consultas), falaram que muitos bebês com essa doença vivem até 4 meses só. A minha faz 3 meses amanhã (sexta, dia 29). É como se me dissessem que ela vai viver só mais um mês.
— Essa doença... — diz Renata, e pausa antes de resumir: — Veio para acabar com os bebês, né?
Pedidos de interrupção da gravidez
Sem parar de chorar por pelo menos meia hora, o nervosismo de V. era tanto que não deixou que médicos a examinassem na última sexta. A avaliação da menina de 4 meses, na Fundação Altino Ventura, ficou para a outra semana, e ela voltou para onde mora: o Lar Rejane Marques, abrigo na capital pernambucana para crianças com deficiência. Com uma filha deficiente e sem condições financeiras, a mãe de V. já pensava em não ficar com a segunda filha antes do parto — quando, então, soube que sua segunda menina também tinha um problema, a microcefalia.
— Isso reforçou essa vontade dela de entregar a criança — diz Élio Braz Mendes, juiz da 2ª Vara de Infância e Juventude de Recife, que marcará uma audiência com a mãe de V., deixada na maternidade e encaminhada pelo Conselho Tutelar ao Lar Rejane.
A mãe não tem visitado a filha no abrigo, mas foi com o bebê até a instituição.
— Até chegou a registrar a menina. O pai é desconhecido. O Ministério Público fala em abandono, mas creio que foi uma entrega com alguma responsabilidade. Ela soube para onde a menina ia — completa o juiz, afirmando que, até agora, esse foi o único caso de entrega de bebê com microcefalia de que ele tem conhecimento. — Hoje, a microcefalia é mais um desafio para a ciência do que para a Justiça.
Mas a Justiça pode passar a ser desafiada: segundo o juiz, pedidos de interrupção legal da gravidez de mulheres que esperam bebês com microcefalia podem começar a chegar a juizados, baseando-se numa comparação com a anencefalia, quando o bebê não tem desenvolvimento do cérebro — e um dos casos em que, desde decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012, a legislação brasileira permite o aborto.
— No caso da microcefalia, o diagnóstico é difícil, mas o prognóstico muitas vezes é de uma criança num estado que tende a ser vegetativo — completa o juiz.
Este mês, na Colômbia, outro país afetado pela zika, o ministro da Saúde abriu a possibilidade de aborto legal para microcefalia. Aqui, uma médica de Minas relatou em artigo este mês tabela de preços de aborto clandestino que existiria para casos de microcefalia, a um mínimo de R$ 2 mil.
— Quando o ministro Marcelo Castro (Saúde) diz que “gravidez é para profissional”, a responsabilidade pelo combate à microcefalia é colocada nas mães. E, aí, as de baixa renda são penalizadas mais uma vez, porque muitas que têm recursos podem recorrer ao aborto — diz a médica Leila Adesse, do Grupo de Estudos do Aborto (GEA). — Como o diagnóstico pelo ultrassom não ocorre nos primeiros meses, mas é nessa fase em que o aborto é mais seguro para a mulher, um debate que começa é o da possibilidade de interrupção da gravidez quando a gestante é diagnosticada com zika e teme que o bebê possa ter sido afetado.
Renata deu sorte, que Rodrigo quase não chora. No caso de Lara, ela só não chora quando alguém lhe balança ou dá leve sacudida — recomendação médica que a família diz ter recebido para acalmá-la. A mãe, o pai e os familiares de Lara se revezam na paciência com o choro contínuo.
— Os bebês com microcefalia choram muito. A gente não sabe se é alguma dor na cabeça. É uma irritação — sublinha a médica Liana Ventura.
Ações para combate a focos do Aedes aegypti, Renata e outros moradores do Centro do município dizem que neste verão, até agora, não viram nenhuma, apesar de a área ter lixo acumulado em terrenos e de moradores já terem tido zika e dengue. A Secretaria estadual de Saúde diz que quem realiza essas ações são os municípios, que o estado só apoia quando solicitado pelas prefeituras, e que, até a última sexta, a prefeitura de Itapissuma ainda não tinha feito essa solicitação. O GLOBO não conseguiu contato com a prefeitura da cidade até o fechamento desta edição.
— Ela (Lara) tem umas 15 consultas por mês — conta Rosa, que teve febre de 3 dias na gravidez. — Numa das últimas (consultas), falaram que muitos bebês com essa doença vivem até 4 meses só. A minha faz 3 meses amanhã (sexta, dia 29). É como se me dissessem que ela vai viver só mais um mês.
— Essa doença... — diz Renata, e pausa antes de resumir: — Veio para acabar com os bebês, né?
Pedidos de interrupção da gravidez
Sem parar de chorar por pelo menos meia hora, o nervosismo de V. era tanto que não deixou que médicos a examinassem na última sexta. A avaliação da menina de 4 meses, na Fundação Altino Ventura, ficou para a outra semana, e ela voltou para onde mora: o Lar Rejane Marques, abrigo na capital pernambucana para crianças com deficiência. Com uma filha deficiente e sem condições financeiras, a mãe de V. já pensava em não ficar com a segunda filha antes do parto — quando, então, soube que sua segunda menina também tinha um problema, a microcefalia.
— Isso reforçou essa vontade dela de entregar a criança — diz Élio Braz Mendes, juiz da 2ª Vara de Infância e Juventude de Recife, que marcará uma audiência com a mãe de V., deixada na maternidade e encaminhada pelo Conselho Tutelar ao Lar Rejane.
A mãe não tem visitado a filha no abrigo, mas foi com o bebê até a instituição.
— Até chegou a registrar a menina. O pai é desconhecido. O Ministério Público fala em abandono, mas creio que foi uma entrega com alguma responsabilidade. Ela soube para onde a menina ia — completa o juiz, afirmando que, até agora, esse foi o único caso de entrega de bebê com microcefalia de que ele tem conhecimento. — Hoje, a microcefalia é mais um desafio para a ciência do que para a Justiça.
Mas a Justiça pode passar a ser desafiada: segundo o juiz, pedidos de interrupção legal da gravidez de mulheres que esperam bebês com microcefalia podem começar a chegar a juizados, baseando-se numa comparação com a anencefalia, quando o bebê não tem desenvolvimento do cérebro — e um dos casos em que, desde decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012, a legislação brasileira permite o aborto.
— No caso da microcefalia, o diagnóstico é difícil, mas o prognóstico muitas vezes é de uma criança num estado que tende a ser vegetativo — completa o juiz.
Este mês, na Colômbia, outro país afetado pela zika, o ministro da Saúde abriu a possibilidade de aborto legal para microcefalia. Aqui, uma médica de Minas relatou em artigo este mês tabela de preços de aborto clandestino que existiria para casos de microcefalia, a um mínimo de R$ 2 mil.
— Quando o ministro Marcelo Castro (Saúde) diz que “gravidez é para profissional”, a responsabilidade pelo combate à microcefalia é colocada nas mães. E, aí, as de baixa renda são penalizadas mais uma vez, porque muitas que têm recursos podem recorrer ao aborto — diz a médica Leila Adesse, do Grupo de Estudos do Aborto (GEA). — Como o diagnóstico pelo ultrassom não ocorre nos primeiros meses, mas é nessa fase em que o aborto é mais seguro para a mulher, um debate que começa é o da possibilidade de interrupção da gravidez quando a gestante é diagnosticada com zika e teme que o bebê possa ter sido afetado.
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