quinta-feira, 2 de maio de 2019

Camilo Santana fala sobre Bolsonaro “Sou um homem do diálogo e torço para dar certo”


Bacalhau com cabeça, nota de 3 dólares, feira livre às segundas e direita brasileira a clamar por justiça social são exemplos de coisas que não existem. Caso existissem, seriam tão inverossímeis quanto um figurão do PT puxando aplausos para um ministro de Bolsonaro e alertando que é preciso dar tempo para que o governo do capitão “possa acontecer”. Mas essas são, de fato, as palavras de Camilo Santana, do PT, governador do Ceará reeleito em outubro passado com 79,9% dos votos, maior votação proporcional entre os 27 governadores brasileiros. Estrela ascendente do partido, ele mantém o tom baixo, quase inaudível, mesmo diante da anarquia autofágica que marcou os três primeiros meses da nova administração federal.

Santana é do partido demonizado por Bolsonaro dia sim, dia sim, mas isso não altera seu discurso conciliador. Talvez seja essa moderação, aliada ao fato de ter servido por oito anos como secretário de Estado no governo Cid Gomes, hoje no PDT, que o faz ser identificado com uma pletora partidária que vai muito além da estrela vermelha. Tasso Jereissati, senador do PSDB, já viu um “jeitão de tucano” no governador; e no Ceará não passa ano sem que os jornais locais não vejam o jovem governador, de 50 anos, de saída para outros partidos, PSB puxando a fila.

A história ensina que o discurso de um ente político muda radicalmente quando ele chega ao governo, mas, no caso de Santana, o pragmatismo alcançou novos patamares. Em vários momentos da entrevista que concedeu a PODER em seu gabinete no Palácio da Abolição, em Fortaleza, o governador sublinhou que é preciso esperar, dar o devido crédito de “primeiro ano” para o governo federal. “Sou um homem do diálogo e torço para que dê certo. É preciso ter cuidado para não perder a relação federativa, institucional. Governa-se para todos. Em janeiro tive atendidos os pleitos, espero que essa relação possa permanecer.”

Um dos pleitos atendidos pela União, na figura do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, foi o envio de algumas centenas de homens da Força Nacional para ajudar no combate ao surto de violência que dominou o estado em janeiro. Foi a reação literalmente explosiva do crime organizado às mudanças do sistema carcerário, a principal delas a reconfiguração dos presídios, que passaram a misturar “irmãos” de diferentes facções. Para isso, Santana “importou” do Rio Grande do Norte Luís Mauro Albuquerque, que havia sido chamado pelo governo potiguar para ser secretário da Justiça e Cidadania após o “massacre de Alcaçuz”, a briga entre os grupos PCC e Sindicato do Crime que culminou na morte de 26 presos no começo de 2017. Na cerimônia de posse dos secretários cearenses, Albuquerque destoou do dress code convencional e apresentou-se com o figurino de quem acaba de voltar de um raid no Afeganistão. Ou no Iraque: um relatório elaborado em 2018 por membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), entidades ligadas ao antigo Ministério dos Direitos Humanos, indicou que os presos de Alcaçuz sofriam “violência física e psicológica” com “seriíssimas semelhanças” à vivida pelos prisioneiros de Abu Ghraib, a prisão iraquiana onde soldados americanos praticaram tortura contra combatentes do regime de Saddam Hussein em 2003.

O Ceará se tornou o estado a não visitar neste verão, quando perto de 300 atentados em série replicaram cenas já vistas alhures, como ônibus queimados e prédios públicos atacados. O toque local foram os viadutos, pontes e passarelas bombardeados. As agressões atingiram cerca de um terço dos municípios do estado, a paradisíaca Jijoca de Jericoacoara incluída, mas Fortaleza e as cidades vizinhas foram as que mais sofreram. Dados do governo apontam 466 detidos (148 menores) e três mortes em confrontos com a polícia.

AUTOESTIMA

Passada a tempestade, vem a bonança, e o governador quer mostrar que o Ceará não tem tempo a perder com más notícias. A autoestima que ele vê despertada na população com a ascensão dos dois principais times do estado, Ceará e Fortaleza, à Série A do futebol nacional é apenas um dado anedótico. Há que se falar na crescente melhora dos índices educacionais – agora o estado não apenas ostenta dados modelares nos ciclos fundamentais, mas também no ensino médio (veja box); precisa-se dar ciência do aumento dramático de voos internacionais para Fortaleza, que quintuplicaram; do investimento no porto de Pecém pelo mesmo grupo holandês que controla as operações do porto de Roterdã, um dos mais importantes do mundo, com vistas ao desenvolvimento do algo ciclotímico polo industrial daquela região; do lançamento de um “hub tecnológico” e os ganhos de infraestrutura da rede de fibra ótica mundial que chega ao Brasil justamente pelo Ceará traz; e é preciso dar voz também a algo aparentemente mais comezinho, a própria possibilidade de realizar investimentos, algo que outros estados, dragados pelo déficit das contas públicas e pelo peso das dívidas previdenciárias, abdicaram há uma cara de fazer. A agenda febril de inaugurações, que PODER pôde sentir na pele na forma de um chá de cadeira no palácio, lembra a de um político em campanha. “Quero quebrar uma tradição política e fazer um segundo mandato tão bom quanto o primeiro”, disse. Santana ainda está em seus primeiros meses de segundo mandato, é verdade, mas essa frase é o máximo que se permite dizer quando perguntado sobre seu futuro político, que passa necessariamente pela aliança com os irmãos Cid e Ciro Gomes. Voz dissonante em seu partido, Santana apoiou a candidatura do atual prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio (PDT) contra a própria candidata do PT e advogou pela chapa presidencial Ciro-Haddad, com o primeiro como cabeça de chapa. “Vejo muito mais convergência do que divergência nos partidos de centro-esquerda e esquerda. É momento de aglutinar, e o Ciro é grande líder para isso.”

Nessa perspectiva, o “Lula tá preso, babaca”, a frase de Cid Gomes dita na campanha presidencial (e repetida por seu irmão em janeiro, num encontro da UNE em Salvador), que virou slogan motivacional da direita, não deve, ou deveria, significar óbice para futuros rearranjos. O PT pode não engolir muito bem tanta cautela, seja nos elogios aos Gomes, seja nos afagos aos ministros de Bolsonaro, como na visita, em 20 de março, a Fortaleza de Gustavo Canuto, da pasta do Desenvolvimento Regional, para o lançamento de 1.248 unidades do Minha Casa Minha Vida. Santana pediu na cerimônia “forte salva de palmas ao ministro Gustavo” e disse também que “se Deus quiser, o ministro voltará ainda este ano para a gente inaugurar a transposição do São Francisco” – a emblemática obra do governo Lula, fundamental para os cearenses que sofrem historicamente com a seca. Desagradar seu partido não é um problema. “Não parei para avaliar isso. Tenho de atender as necessidades da população. Irei atrás de quem puder ajudar o estado. Mesmo sendo o governo Bolsonaro um governo que não votei, apoiarei aquilo que achar importante para o Brasil melhorar.”

LIVE

Pode-se dizer que Santana se identifica com o presidente em ao menos um ponto – a forma de se comunicar. Toda terça-feira, ao meio-dia, ele protagoniza um “live” para, em suas próprias palavras, “estar presente no Ceará inteiro ao mesmo tempo”. Já foram feitos 70 e, segundo Santana, outros governadores, como Rui Costa, da Bahia, decidiram imitá-lo. Numa sessão, ele apregoa, já recebeu 15 mil perguntas. “É preciso prestar contas e saber ouvir a reclamação do cidadão de que a saúde do seu município está ruim, que o acesso à cidade dele está precário”, diz. Haters, conta, são poucos. Bom pra ele. No atual estado de coisas da política brasileira, as redes sociais parecem ser capazes de definir eleições e, fora do ciclo eleitoral, de oferecer (ou minar) sustentação política. Detalhe: nem sempre, ou melhor, quase nunca, mobilizando informações confiáveis. Caso elas fizessem parte do modus operandi desses críticos, Santana poderia vir a ter de prestar contas sobre questões como a truculência de sua polícia, que teve praticamente dobrado o número de mortes de civis em confrontos entre 2015 e 2017; sobre a paralisação das obras do Acquario Ceará, que já consumiu cerca de R$ 160 milhões de recursos públicos e segue a não ver navios; e talvez sobre as constantes mesuras à classe empresarial, notadamente à Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), que muitos consideram exageradas. Sobre a primeira questão, ele disse a PODER que sua determinação para as forças policiais é de que “respeitem a lei” e que chamou Ministério Público e Tribunal de Justiça para acompanhar as ações no sistema prisional, além de sublinhar que “o Ceará é o único estado do Brasil a ter uma controladoria disciplinar independente”; sobre o Acquario, a promessa de fechar a torneira esteve a ponto de ser cumprida, mas as dificuldades no modelo de concessão e o recente anúncio do grupo M. Dias Branco em pular fora da parceria público-privada trazem o tema de volta à estaca zero. Por fim, quanto às afinidades eletivas do governador, essa parece ser uma questão ainda pouco relevante diante do fato de que quatro em cada cinco cearenses mostraram-se em outubro bastante dispostos a seguir com Santana até 2022.

ESTADO EDUCADOR

Sempre se falou que o Ceará exporta comediantes, mas as definições foram atualizadas com sucesso. O estado virou referência em educação pública, com Sobral, a cidade de Ciro e Cid Gomes, e depois o próprio estado a se tornar líder dos indicadores nacionais de avaliação do ensino fundamental. O médio ainda não é modelar, mas o gap está sendo combatido na gestão Camilo Santana. A propósito, o governador celebrou em março a entrada de 20.207 alunos da rede pública em universidades (públicas e privadas). O número é 19,59% maior do que o de 2017. No Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), o Ceará supera a meta estipulada para os ciclos fundamentais e mostra clara evolução desde 2005, período que compreende o fim da gestão Lúcio Alcântara (PSDB), os dois mandatos de Cid Gomes e o primeiro de Santana. A rede pública do Ceará subiu do nível 2,8, em 2005, para 6,1, em 2017, taxa de crescimento que é o dobro da média nacional para o mesmo período. A nova fronteira é a educação em período integral. Das 727 unidades públicas de ensino do estado, mais de um terço adota esse regime.

GOVERNADOR “IRRESPONSÁVEL”

O ano de 2018 foi trágico para a família do empresário João Batista Magalhães, de Serra Talhada (PE). Na noite de 7 de dezembro, ao voltar do aeroporto de Juazeiro do Norte, no sul do Ceará, Magalhães, seu filho Vinícius e três outras pessoas que vinham de São Paulo e estavam com os dois no carro foram feitos reféns por assaltantes que atacavam agências bancárias da pequena Milagres, a meia hora do aeroporto. Usados como escudo humano, foram mortos no confronto com a polícia, que monitorava havia algum tempo a movimentação dos assaltantes. O governador Santana, no afã de louvar sua polícia, estranhou o fato de haver reféns “de madrugada num banco”. A declaração foi considerada infeliz pelo próprio governador, que se desculpou dias depois. O jornalista Elio Gaspari, em sua coluna nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, chamou Santana de “irresponsável”. “Não tive talvez a cautela que eu sempre tive em me pronunciar, a forma que eu falei foi mal interpretada e acabei depois pedindo desculpas”, disse Santana a PODER. E quanto a Gaspari, foi enfático: “Acho que o estado que mostra ao Brasil ser o mais equilibrado, que mais faz investimento, que tem melhor educação pública, não pode ser chamado de estado irresponsável. Foi uma fatalidade. Acho que [Gaspari] precisa conhecer melhor o Ceará, e conhecer o governador. Está convidado”.

Fonte: Glamurama Uol

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