O programa de transplante do HM, da Rede Sesa, completará 25 anos em atividade, sendo um capítulo importante na história da saúde pública brasileira
No colar da professora Ester Emerick Cheron, 37 anos, um pingente de coração, que apesar da delicadeza da forma e tamanho, sustenta a grandeza e força que tem o viver. Um símbolo para Ester, que é natural de Alvorada do Oeste, Rondônia, e passou por um transplante cardíaco em dezembro de 2022 no Hospital Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, em Fortaleza, no Ceará.
“O bonito é que ele [pingente] termina onde começa a minha cicatriz, que é a cicatriz que eu tenho muito orgulho, da minha nova vida. O pingente representa meu coração novo, só que fora do peito”, ressalta Ester, explicando que a inspiração surgiu ao ver uma enfermeira do Hospital de Messejana usando pingente em formato de coração.
O Hospital de Messejana, fundado em 1933, é uma unidade voltada para assistência de alta complexidade, ensino, pesquisa e inovação, sendo especializado no diagnóstico e no tratamento de doenças cardíacas e pulmonares. O HM integra a rede de hospitais da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), acolhendo pacientes dos 184 municípios cearenses e de outras regiões do Brasil, tanto na Emergência quanto nos 25 ambulatórios do Serviço de Pacientes Externos.
O HM consolida-se como unidade de referência ao alcançar nesta semana a marca de 500 transplantes cardíacos, sendo 423 adultos e 77 pediátricos, ficando atrás apenas do Instituto do Coração, localizado em São Paulo, com mais de mil transplantes. Antes disso, em junho de 2011, o Hospital de Messejana foi a primeira unidade do Norte e Nordeste a realizar transplante pulmonar.
O governador do Ceará, Elmano de Freitas, destaca a importância da marca histórica. ” A unidade é referência em atendimento de cardiologia e pneumologia. É pioneira em transplantes cardíacos pediátricos e pulmonares, sendo o segundo maior hospital transplantador do País. Parabéns a toda equipe de profissionais do Hospital de Messejana que faz história e salva vidas todos os dias”, reforça.
O atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar, com 33 profissionais, entre cirurgiões, cardiologistas, anestesistas, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas e nutricionistas. Profissionais que se dedicam diuturnamente na reabilitação dos pacientes.
Para além da marca na história da saúde pública no Ceará, cada transplante realizado no HM guarda em si histórias e sonhos de pessoas como Ester, que foi diagnosticada aos dez anos de idade com miocardiopatia hipertrófica, a mais comum doença cardíaca de origem genética.
Apesar do diagnóstico, Ester sempre tentou dar à própria vida um ritmo normal. Formou-se em Pedagogia, casou e teve dois filhos. “Os meus filhos nunca me viram saudável. Eu não podia acompanhá-los nos jogos de futebol nem passear com eles na rua, porque eu me cansava. Era uma rotina de uma pessoa doente que eles cresceram vendo. Agora não, por graça de Deus e com esse coração, a gente vai fazer um planejamento diferente, que é meu maior sonho”, projeta.
O caminho até o novo coração
Em 2017, a doença de Ester evoluiu para insuficiência cardíaca. Foi quando a professora precisou viajar até o estado de São Paulo para colocar um Cardioversor Desfibrilador Implantável (CDI), porque o dispositivo, que detecta arritmias graves e as trata por meio de estímulos elétricos, ainda não estava disponível na rede pública de saúde em Rondônia.
“[Em 2020] A bateria do meu CDI acabou, e eu fiz a troca, em Rondônia, no fim desse ano. De lá até 2022, as coisas não foram melhorando, mesmo com essa nova tentativa. O médico que estava me acompanhando já tinha avisado que, provavelmente em dois anos, eu precisaria entrar no transplante”, conta.
O ano passado foi marcado por momentos difíceis para ela, com internações ao longo dos meses, num descompasso entre o estado de saúde e o arrastar dos dias. A equipe médica iniciou a busca para encontrar um estado com a menor fila de transplante. “[O médico disse que] o lugar é o Ceará. Aí, nós viemos, meu marido e eu, sem conhecer ninguém. Deixamos a família lá. Só as malas, sem saber quando iremos voltar”, lembra.
No Hospital de Messejana, Ester foi encaminhada para a consulta com o médico cardiologista e coordenador da Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do HM, João David de Souza Neto. Em outubro de 2022, foi internada para a cirurgia de transplante. Nesse período, Ester precisou usar durante 14 dias a Oxigenação por Membrana Extracorpórea (Ecmo), que funciona como coração artificial e pulmão artificial.
“Foram os piores dias para mim. Primeiro, porque eu fiquei mais da metade deles consciente. Estava na UTI, em Ecmo, sem poder mexer, e vendo tudo acontecer. Eu tinha consciências que sem um coração novo eu não resistiria”, sublinha.
Toda a equipe do Hospital estava mobilizada para encontrar o novo coração de Ester; três apareceram, sendo que duas famílias negaram a doação do órgão e um terceiro coração não foi compatível. Apesar disso, Ester continuava recebendo afeto para seguir na espera.
“Nesses dias eu fiz aniversário, mas já estava emocionalmente destruída, chorando muito. A equipe fez bolo de aniversário para mim, deixaram meus filhos entrarem e meu marido ficar mais tempo comigo, que foi meu grande apoio e não me deixou desistir. Eu pedia para ir embora, morrer em casa, e o médico dizia que meu coração ia chegar. Toda a equipe tentava de tudo para me animar. Até que chegou o dia que meu coração apareceu”, conta Ester.
Ester recebeu alta no início de fevereiro e está em acompanhamento na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do HM. Por isso, a volta para Alvorada do Oeste, em Rondônia, vai demorar um pouco, mas ela já considera o Ceará, a Terra da Luz, como lar também. “Eu achava que Deus tinha me trazido para eu morrer aqui, mas não foi. Ele me trouxe para me salvar aqui. Sou muito grata à família que teve a atitude de doar o órgão”, agradece.
Para além do “milagre da praia”
Os primeiros transplantes cardíacos no Ceará foram realizados entre 1993 e 1997, tendo a participação dos médicos João David e Juan Mejia. No Hospital de Messejana, o primeiro procedimento aconteceu em 1999, mais precisamente em janeiro: o marceneiro Antônio Pereira de Moura, que na época tinha 35 anos e portador de miocardiopatia isquêmica. O paciente foi acompanhado e transplantado pela equipe médica no HM. O senhor Moura, como é conhecido, também foi o primeiro a passar por retransplante de coração no HM, em 2005.
Em 1997 foi criado o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), por meio do Decreto Federal n° 2.268, que é responsável pelo controle e pelo monitoramento dos transplantes de órgãos, de tecidos e de partes do corpo humano realizados em território brasileiro.
Trinta anos depois dos primeiros transplantes no Ceará, que para alguns céticos era êxito pontual, chamado de “milagre da praia”, a experiência do HM hoje é referência no Sistema Único de Saúde (SUS), considerado o maior sistema público de transplantes do mundo.
Essa história tem a marca e dedicação de muitos profissionais, como o cardiologista João David de Souza Neto, que destaca o papel desempenhado pelo HM. “Isso surgiu dessas ideias nossas com um grupo de cirurgiões junto à comunidade do Hospital. Um marco que começou a ser organizado em 1998, do que conhecíamos em outros centros brasileiros e fora do Brasil. Os pacientes que tinham indicação para transplante, isto é, com doença cardíaca em fase quase terminal sem outro recurso que não fosse terapêutico, tinham que ir para São Paulo. Ninguém sabia como era o sofrimento de esperar um transplante em uma cidade como São Paulo. Isso inverteu. Esses pacientes não precisavam mais ir a São Paulo”, lembra João David.
O que teve início para minimizar os sofrimentos de pacientes e familiares, aumentando as chances de vida, transformou-se na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca, composta por equipe multidisciplinar. Reforçando, inclusive, a estruturação de atendimento do Hospital de Messejana. “O Hospital é pujante [em outros setores]. O transplante, na realidade, quando surgiu e foi caminhando, trouxe várias coisas que não existiam: medicamentos, procedimentos invasivos de 24 horas como o cateterismo, ecocardiograma de 24 horas, integração entre os profissionais do Hospital e a Unidade de Transplante, criação da Unidade de Insuficiência Cardíaca”, cita o coordenador da Unidade.
Ainda sobre a dedicação dos profissionais do HM, João David diz que essa é uma característica que se confirma ano após ano. “Eu digo sempre que todos os profissionais, do porteiro até o auxiliar do centro cirúrgico, o contínuo, o maqueiro, o motorista da ambulância que sai nas carreiras para buscar o coração, todos os profissionais do HM se envolvem. Sem a colaboração de todos esses profissionais não funciona. A partir do momento em que é captado o órgão, deve-se implantar o coração em até quatro horas. A gente faz tudo para que tudo aconteça antes desse tempo. Isso envolve toda a comunidade do Hospital e também de fora, como a Polícia Militar e a família do doador, que sem ela não iria acontecer [a doação]”, acrescenta João David.
Esse exemplo atraiu profissionais e estudantes de várias áreas da saúde que vieram ao HM conhecer de perto a experiência. “A partir de 2003, começamos a divulgar a experiência e o conhecimento. Vieram grupos de outros estados e profissionais de outras equipes. Fizemos cursos e workshops exclusivos de transplantes dentro do Hospital de Messejana e em outros hospitais de Fortaleza”, conta o médico.
Divisor de águas
Dos 500 transplantes cardíacos realizados no HM, o cirurgião cardiovascular e coordenador cirúrgico do transplante, Juan Mejia, já participou de mais de 400 procedimentos, entre adultos e pediátricos. Sobre o início do transplante cardíaco no Ceará, o médico registra que foi um divisor de águas dentro da história da saúde pública brasileira, caracterizado pela durabilidade e inovação em conhecimento, tecnologia e gestão.
“[Década de 1990] Era a época em que o Ceará começava a despontar na doação de órgãos. O Brasil começava a acordar também de um índice de doação de 6 por milhão de habitantes, passando, recentemente, para fazer 16 ou 18. É claro que estamos atrás dos Estados Unidos, com 25 e 28 por milhão de população, e da Espanha, com 35. Nesse embalo, nós também entramos para aprender e organizar. Foi um conjunto de trabalho de pessoas que trabalharam para poder efetivar, primeiro, a doação de órgãos para transplantes e, dentro disso, o transplante para o coração”, recorda o médico, que também é membro da Câmara Técnica do Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde.
Dentro das ações de expansão, destaca-se a criação do serviço de assistência circulatória mecânica, o coração artificial. O Ceará foi pioneiro no uso da tecnologia no Brasil e treinou equipes de outros centros.
“Eu sempre me perguntava como que fazem os outros países e centros para não perder os pacientes. Como que eu faço que aguente até o aparecimento de um doador? Então fomos até diferentes centros importantes do mundo, onde entendi que colocar máquinas como ponte para transplante podia ganhar tempo e manter vivos os pacientes enquanto aparecia o coração de um doador compatível. Criamos um programa robusto de coração artificial como uma ponte para transplante”, afirma Juan Mejia.
Apesar dos avanços, o tempo ainda é uma variável importante para o coração humano. Estar atento a isso pode evitar problemas no futuro. “Existem algumas situações que são inerentes ao tecido cardíaco, onde realmente pouco faríamos mesmo modificando o estilo de vida. [Exemplo] O paciente que não cuida da hipertensão e não atua sobre a diabete, obviamente que isso piora a irrigação do coração, que uma hora vai começar a crescer por causa da insuficiência cardíaca avançada. [Coração crescido] é a fase final de muitas doenças, porque a gente não teve o controle de uma vida organizada, com caminhadas diárias, controlando o peso e evitando fumar”, explica o cirurgião.
Sobre a escolha do perfil do doador de coração para o transplante, Juan Mejia fala das condições necessárias. “No Brasil, escolhemos um doador para transplante de órgãos quando a pessoa está em morte encefálica, com circulação funcionando e coração bombeando. Tem que ter uma idade limite, evitando doador acima de 50 anos. É uma série de circunstâncias muito exigentes para poder utilizar esse coração como órgão para transplantes em paciente em fase final de doença cardíaca”, pontua.
Quando é preciso um novo coração, a solidariedade humana também é decisiva. Por isso, o senhor Moura, primeiro paciente transplantado e retransplantado do HM, é duplamente agradecido às famílias dos doadores. “Eu tenho uma satisfação grande de falar sobre o transplante. Acho isso um projeto de vida. Eu sou exemplo para qualquer um para cuidar do coração. Deus dá oportunidade para todos”, reforça Moura, que completará 60 anos neste ano, e segue em acompanhamento na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do HM.
A gratidão de Moura também se estende a toda equipe do HM, incluindo os médicos do transplante e retransplante Juan Mejia e João David, respectivamente, que foram inspiração para os nomes de dois dos cinco filhos de Moura. O médico João David, inclusive, é padrinho do também David, de 11 anos.
Dos 500 transplantes cardíacos realizados no HM, o cirurgião cardiovascular e coordenador cirúrgico do transplante, Juan Mejia, já participou de mais de 400 procedimentos, entre adultos e pediátricos. Sobre o início do transplante cardíaco no Ceará, o médico registra que foi um divisor de águas dentro da história da saúde pública brasileira, caracterizado pela durabilidade e inovação em conhecimento, tecnologia e gestão.
“[Década de 1990] Era a época em que o Ceará começava a despontar na doação de órgãos. O Brasil começava a acordar também de um índice de doação de 6 por milhão de habitantes, passando, recentemente, para fazer 16 ou 18. É claro que estamos atrás dos Estados Unidos, com 25 e 28 por milhão de população, e da Espanha, com 35. Nesse embalo, nós também entramos para aprender e organizar. Foi um conjunto de trabalho de pessoas que trabalharam para poder efetivar, primeiro, a doação de órgãos para transplantes e, dentro disso, o transplante para o coração”, recorda o médico, que também é membro da Câmara Técnica do Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde.
Dentro das ações de expansão, destaca-se a criação do serviço de assistência circulatória mecânica, o coração artificial. O Ceará foi pioneiro no uso da tecnologia no Brasil e treinou equipes de outros centros.
“Eu sempre me perguntava como que fazem os outros países e centros para não perder os pacientes. Como que eu faço que aguente até o aparecimento de um doador? Então fomos até diferentes centros importantes do mundo, onde entendi que colocar máquinas como ponte para transplante podia ganhar tempo e manter vivos os pacientes enquanto aparecia o coração de um doador compatível. Criamos um programa robusto de coração artificial como uma ponte para transplante”, afirma Juan Mejia.
Apesar dos avanços, o tempo ainda é uma variável importante para o coração humano. Estar atento a isso pode evitar problemas no futuro. “Existem algumas situações que são inerentes ao tecido cardíaco, onde realmente pouco faríamos mesmo modificando o estilo de vida. [Exemplo] O paciente que não cuida da hipertensão e não atua sobre a diabete, obviamente que isso piora a irrigação do coração, que uma hora vai começar a crescer por causa da insuficiência cardíaca avançada. [Coração crescido] é a fase final de muitas doenças, porque a gente não teve o controle de uma vida organizada, com caminhadas diárias, controlando o peso e evitando fumar”, explica o cirurgião.
Sobre a escolha do perfil do doador de coração para o transplante, Juan Mejia fala das condições necessárias. “No Brasil, escolhemos um doador para transplante de órgãos quando a pessoa está em morte encefálica, com circulação funcionando e coração bombeando. Tem que ter uma idade limite, evitando doador acima de 50 anos. É uma série de circunstâncias muito exigentes para poder utilizar esse coração como órgão para transplantes em paciente em fase final de doença cardíaca”, pontua.
Quando é preciso um novo coração, a solidariedade humana também é decisiva. Por isso, o senhor Moura, primeiro paciente transplantado e retransplantado do HM, é duplamente agradecido às famílias dos doadores. “Eu tenho uma satisfação grande de falar sobre o transplante. Acho isso um projeto de vida. Eu sou exemplo para qualquer um para cuidar do coração. Deus dá oportunidade para todos”, reforça Moura, que completará 60 anos neste ano, e segue em acompanhamento na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do HM.
A gratidão de Moura também se estende a toda equipe do HM, incluindo os médicos do transplante e retransplante Juan Mejia e João David, respectivamente, que foram inspiração para os nomes de dois dos cinco filhos de Moura. O médico João David, inclusive, é padrinho do também David, de 11 anos.
Referência
Hoje, o Hospital de Messejana tem capacidade instalada de 463 leitos, sendo 70 deles de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em 2022, o Hospital realizou 2.675 procedimentos cirúrgicos. Outro destaque é a Hemodinâmica, que realiza procedimentos diagnósticos e terapêuticos na área cardiovascular, 24 horas por dia, todos os dias da semana. Na Hemodinâmica são realizadas cerca de 750 intervenções médicas por mês.
Hoje, o Hospital de Messejana tem capacidade instalada de 463 leitos, sendo 70 deles de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em 2022, o Hospital realizou 2.675 procedimentos cirúrgicos. Outro destaque é a Hemodinâmica, que realiza procedimentos diagnósticos e terapêuticos na área cardiovascular, 24 horas por dia, todos os dias da semana. Na Hemodinâmica são realizadas cerca de 750 intervenções médicas por mês.
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